Glorificados no Senhor

(Vandeia Ramos)

Alguns estudiosos afirmam que os evangelhos são a história da Paixão-Morte-Ressurreição com um longo prólogo. “Foi para isso que Eu vim”. Há um caminho que os evangelistas traçam, da genealogia, Encarnação, todos os quatro encaminhando a narração para a Cruz.
A Palestina, por onde Jesus andou entre nós, era uma área de passagem entre a Europa, Ásia Menor, África e Mesopotâmia. Comércio internacional por mar ou por terra. Desde o século IV a.C., com a conquista das terras por Alexandre Magno, o helenismo se espalhou, tornando a língua grega referência de status social e meio de comunicação entre os povos. O Império Romano a absorveu no seu cotidiano. Assim, é comum vermos gregos na Palestina e a língua era tão importante que todo o Novo Testamento foi escrito em grego – ainda que o pensamento seja semita, dos povos originários da região, como os hebreus.
Além de muitos pagãos terem admiração pelo Deus de Israel, os judeus tiveram momentos na sua história de dispersão. Podemos observar no caminho de Paulo em novas cidades: buscar primeiro a sinagoga. Havia uma contribuição anual que todo judeu deveria oferecer ao Templo e as festas eram momentos privilegiados para que um representante da sinagoga levasse as doações. Assim, temos Jerusalém com inúmeros peregrinos na Páscoa, como em Pentecostes.
Pelo Evangelho de João, sabemos que a vida pública de Jesus durou três anos, pois Ele se dirige a Jerusalém em três Páscoas. E esta seria especial, pois Jesus sabia que o Sinédrio já tinha decidido por sua morte. Mas Ele foi mesmo assim. Sabia o que esperar.
Assim entendemos a presença dos peregrinos, o interesse por Jesus que muitos já tinham levado a conhecimento de sinagogas distantes… Não chegam direto. Buscam apoio em quem pode ajudar – Filipe, de Betsaida, cidade pesqueira da Galileia.
O Evangelho de João destoa no estilo dos demais. Ele já começa apresentando Jesus como o Logos, que veio ao mundo para nos salvar. E segue a narrativa com Jesus chamando os apóstolos, os sinais do Reino e o anúncio da Paixão. Para o evangelista, a cruz é o trono, fazendo paralelo entre o Cordeiro pascal israelita e o Rei dos Reis, nos objetos e horários. Assim, no último discurso, Jesus vai orientar os seus de que devem amar como Ele os ama.
A Cruz é o encontro do amor humano com o amor de Deus, que segue confiando em Deus mesmo quando tudo parece contradizer. Que o Cristianismo é algo pelo qual se morre. Que mostra para todos, de todos os lugares e tempos, que Jesus está preso na cruz, entregando-se totalmente por cada um de nós – suas mãos não castigam, do alto perdoa, seus pensamentos são cravados por espinhos, seus pés um sobre o outro sem poder caminhar. É Deus nos mostrando que segue nos amando, ainda que tenhamos cometido a maior agressão a Ele ou a alguém.
A glória de Deus é este amor gratuito, que independe de nosso mérito, de algo que possamos fazer, falar e sentir. É a obediência do Filho que recebe com amor o que o Pai lhe apresenta, oferecendo sua obediência e confiança.
Para nós, a cruz se torna salvação e julgamento. O modo como nos portamos frente à cruz nos diz quem somos, seja a cruz de Cristo ou a nossa específica. Em momentos de dor e sofrimento, onde estamos? Somos o Povo da Cruz! O modo como nos oferecemos e nos relacionamos no dia a dia com Deus, agimos junto aos irmãos, nos diz nossa postura frente à dor do mundo: se temos um coração de pedra ou de carne – e carne nos remete à Encarnação, ao Corpo de Cristo Igreja e Eucaristia.
Nesta quaresma, peçamos a São José que não nos deixe afastar de Jesus e de Maria, na cruz nossa de cada dia. E que interceda a Jesus, para que nos conserve com um coração sempre novo.

Filhos da Luz

(Vandeia Ramos)

Estamos no Domingo Laudate, em que o roxo espiritual é amenizado, pois já é possível ver a luz da nossa esperança. Estamos na quaresma, de caminhada no deserto, mas vivemos na certeza de que a ressurreição está à espera.
Somos católicos. O centro da nossa fé, a plenitude da Revelação, é Jesus Cristo, o Emanuel, o Deus conosco, que caminha nossos caminhos para se fazer Caminho para o Pai; que sofre nossas dores e dramas, considerando-os nos seus desígnios de salvação; que arma sua tenda, chora, vive, e quer que tomemos parte em sua Vida. Ele vem fazer parte da nossa. “O amor amou” (1Jo 4, 19).
É muito difícil compreender as diferenças entre a primeira leitura e o evangelho se não considerarmos a dinâmica da história humana e como a Igreja nos ensina. A mentalidade é a última a se atualizar. E expressar na escrita é sempre um desafio.
Assim permanece ainda hoje a ideia de que “Deus castiga” em contraponto ao “Deus salva” pela sua misericórdia. Quando as narrativas do Antigo Testamento contam o “castigo de Deus”, precisamos considerar dois pontos:

  1. O sentido de responsabilidade com o pecado, de consequência pelas escolhas, pelo tipo de vida que distancia de Deus. Israel reconhece-se pecador, que rompeu a Aliança, e que este rompimento é uma decisão livre que o afasta de Deus, expondo-se a ataques de inimigos e mesmo ao exílio pela Babilônia.
  2. À medida que o texto bíblico se aproxima da era cristã, Israel desenvolve melhor seu vocabulário e os argumentos ficam mais claros. A consciência de que Deus caminha junto, conduzindo e cuidando, de modo real e bem concreto, vai aumentando. Assim, pela consciência de quem é e do que faz, Israel considera que o “castigo de Deus” é que este acompanha a situação de pecado, envia mediadores, os profetas, para lembrar que está em se afastando e que a quebra da Aliança traz consequências. Israel escolhe permanecer na situação e ainda a agrava. Deus silencia. Israel, que não ouviu os enviados de Deus, permaneceu em situação de pecado não cuidando do povo, é vencido por Nabucodonosor. Sua elite nobre, intelectual e profissional é exilada na Babilônia. Ou seja, o “castigo de Deus” é deixar Israel livre para seguir com suas escolhas, ainda que estas o levem ao sofrimento.
    Depois do choque, de ter que se adaptar a um novo povo, cultura, divindades… em se tornar escravo, em viver na lembrança de que sua casa foi duramente esmagada, que muitos dos seus foram mortos… como consequência de seus descaminhos, Israel entra em crise existencial – precisa se entender e à sua relação com Deus.
    Sustentam a língua na unidade da família, bem como práticas rituais agora em particular. A força de Jerusalém, de tudo o que significa, é o alimento cotidiano que refaz sua identidade hebraica e seus laços com o Senhor. Perdão e misericórdia, relação pessoal, perceber-se pequeno e a grandiosidade de Deus… vão se desenvolvendo. Nós rompemos a Aliança, mas Deus, não.
    E o Misericordioso faz maravilhas. Enviará Ciro, da Pérsia, como imagem de libertador para que Israel retorne à sua terra. O Senhor não desiste dos seus, não condena, não castiga, não vinga. Deus não é um justiceiro humano que age com violência por vingança a quem não segue o que manda. Ele perdoa e é misericordioso. Ele ama. E respeita a liberdade que nos deu.
    Agora podemos ler novamente o evangelho e ver o anúncio de Jesus que será levantado. Na cruz, diz que, apesar de tudo que possamos fazer, Ele sofre no nosso lugar, dá a si mesmo, prega sua mão mostrando que não nos fará qualquer mal, ainda que nosso pecado seja tão grande a ponto de entregá-lo. Ele é o próprio amor, que nos ensina que amar como Ele ama é o caminho para a ressurreição. Por Ele, com Ele e nEle.
    Ressuscitados, somos chamados a iluminar o mundo, mostrando o caminho para o céu, para Jesus.

Quem somos nós na fila do pão?

(Vandeia Ramos)

É costume ouvirmos e falarmos que agimos de determinada forma de acordo com o modo com que as pessoas se comportam conosco: carinho, atenção, consideração, também raiva, mágoa, agressividade… Aqui temos um pressuposto que precisamos refletir: quem e o que nos define? Somos cristãos. Deveríamos viver na realidade do “não sou eu mais que vive, mas Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).
Quando ouvimos a primeira leitura, Deus nos dá mandamentos que definem a identidade do povo hebreu. Segui-los é se identificar como membro do Povo Eleito. Ele não coloca opções, atenuantes, possibilidades de quebra, ainda que o próprio povo tenha feito. Não justifica o “não criar falso testemunho”, mas, se o coleguinha disser mentiras sobre mim ou distorcer o que fazei, eu posso reagir com briga e fazer o mesmo. Ele não diz “honrar pai e mãe” e continua que, se um deles disser algo que eu não concordo, sou autorizada a desrespeitar… Não é não. E pronto! Do pensamento “aceita que dói menos”.
No “sim” que somos chamados a dar, falhamos inúmeras vezes. E ainda tendemos a nos justificar pelo comportamento de outra pessoa. Temos até dificuldades com a Confissão, em enumerar nossos pecados sem colocá-los como reação a outrem. Frente a frente com Deus, em plena quaresma, que nos ensina o caminho da cruz como o caminho do céu, somos chamados a rever nossa postura.
Temos uma identidade a nos conformar, a tomar forma: as Bem-Aventuranças. Temos um código a seguir: os 10 mandamentos. Temos uma imagem a encarnar: Jesus Cristo. Temos modelos únicos de seguimento: os santos e mártires.
E Jesus segue em direção ao Templo pela proximidade da Páscoa. Peregrinos judeus fazem o mesmo. O Templo está cada vez mais cheio dos que procuram o Senhor. E, como “moscas na padaria”, temos os oportunistas de plantão, que querem se aproveitar da oportunidade da aglomeração para ganhar na mercantilização da fé, oferecendo produtos e facilidades à mão dos que passam. É sempre um risco que corremos em nossas comunidades e centros de peregrinação.
Entre facilitar a vida do peregrino com mercadorias a serem ofertadas a Deus no Templo, o preço inflacionado, o obstáculo para passar, o excesso de ruído, a competição pela venda, a disputa pelo cliente (e não pelo fiel)… Se trouxermos para hoje, ainda podemos observar pregações que dispersam a atenção, discursos vazios que oferecem uma salvação fácil e/ou desperta emoções confortadoras, mas que não reforçam nosso compromisso com o Senhor.
É semana da Páscoa e Jesus sabe o que o espera. Sua condenação está decidida desde a ressurreição de Lázaro. Independente do que fizer, o Sinédrio só aguarda a melhor oportunidade. Mas, antes da prisão, é preciso dar um recado: vocês podem fazer o que for, até matar, mas Eu vencerei a morte! O Templo que tanto prezam, que foi construído para ser expressão da liturgia celeste, não é de pedras, mas tem vida em si mesmo.
Do mesmo modo, enquanto Corpo de Cristo que vai para a cruz, morre e ressuscita, a Igreja também é atacada, questionada, tendo oportunistas aproveitando diversos momentos para tirarem vantagens e holofote do que deveria estar voltado para o Santo dos Santos. Eles se colocam como obstáculos à fé e acreditam que são necessários à oração do Povo de Deus.
É o próprio Jesus que toma a corda nas mãos. Sabemos que os discípulos o acompanham, mas não cabe a eles fazer a limpeza do Pátio. Dá para pensarmos que o aviso se estende a eles também, e que os marcou de tal forma a ponto de citarem o episódio em suas pregações e João o colocar no Evangelho – estudiosos apontam que, quando o apóstolo escreveu o livro, muitos tentaram fazer o mesmo nas primeiras comunidades, e precisavam ser alertados.
Com o que fez, Jesus despertou o interesse de muitos. Tínhamos diferentes grupos, como os essênios, que eram contra o sacerdócio de Israel, acusando-os de corruptos; e os zelotes, que defendiam o uso de armas e da força moral para uma luta nacionalista e derrubada do Império Romano. Que leituras muitos até hoje não fazem deste comportamento de Jesus, segundo sua própria perspectiva, e não a do Senhor?
Mas Jesus conhece nosso coração, sabe do que nos impulsiona, quem somos. Nossas desculpas e justificativas não funcionam com Ele. O silêncio dos discípulos diz muito. Sigamos em nossa preparação quaresmal, para que possamos ficar de pé perante a cruz de Cristo.

Os Escolhidos de Jesus

(Vandeia Ramos)

Nos dias de hoje, Jesus nos leva a lugares à parte: à missa, aos sacramentos, a aprofundarmos a fé, experiências pessoais com Ele, a olharmos a realidade tendo as bem-aventuranças como chave de leitura, a dias em família, reposicionando prioridades, fazendo escolhas de vida… Pelo nosso “sim” constante e sempre renovado através das situações em que vivemos.
Nesse cotidiano, frequentemente somos convocados para momentos especiais, para subir a montanha e ficar mais próximo de Deus. Em termos bíblicos, pela nossa fé, vemos o Espírito Santo tirar um véu e nos permitir ver melhor, como Jesus vê. Tudo se ilumina! Como se Jesus segurasse nossas mãos, guiasse nossos olhos, e pudéssemos entender de modo novo o que sabemos que, sozinhos, não conseguiríamos.
Como explicar o sofrimento de tantas famílias nestes dias? O crescimento da violência doméstica? A distância física de familiares e amigos em hospitais? A solidão? A falta de sentido de tantos jovens, elevando o número de suicídios? É como uma névoa que nos oprime e, ao mesmo tempo, nos alerta para os riscos de vivermos uma vida sem sentido.
Para muitos, Deus tem pedido pais, pessoas queridas e até mesmo o filho, como a Abraão,… Mas temos algo ou alguém que realmente seja nosso? Ou, como nos lembra Gn 1-2, “tudo é do Pai” e está conosco como confiança e responsabilidade?
Temos muitas montanhas a que Jesus nos convida a subir com Ele. Montanhas espirituais. Em que precisamos deixar para trás tudo que possa nos atrapalhar, colocarmos calçados confortáveis, roupas que nos protejam, estamos fisicamente dispostos e confiar naquele que nos guia. Vamos a pé. Cada um no seu ritmo, mas sem desistir. Cansaço, suor, sede, fome, dificuldades inúmeras… fazem parte e já sabemos. Mas vamos com Jesus – e esta certeza compensa tudo o que possamos passar.
No final, Jesus se revela a nós. Só a nós. Quantos momentos de nossa vida não nos sentimos tocados de modo especial que não teríamos palavras para explicar? No fim da caminhada, a alegria do encontro. Temos também Moisés e Elias. Eles são a personificação da Lei e dos Profetas, que são a preparação para o alto da montanha. Ouvimos Jesus e o anunciamos nos caminhos da catequese. Aceitamos sua convocação para a Montanha. Obedecer vem do grego ouvir. Com Moisés e Elias, a caminhada a seguir e ser catequista recebe seu sentido completo.
Depois de deixarmos tudo que de material pudesse nos atrapalhar, ainda falta os pensamentos, mentalidade, modo de pensar, coração. Pedro, João e Tiago ainda pensam como o povo no Antigo Testemento, de montar tendas no deserto para descansar e se proteger das intempéries. Eles não conseguem ainda olhar para Jesus face a face e têm medo. Não entendem o que estão vivendo.
O Pai se manifesta, cobre e afirma o amor e a autoridade do Filho. Ouvir Jesus é ouvir o Pai. Precisamos de mais? Moisés e Elias somem. Jesus é a Palavra de Deus. Ele diz. Ele é a Lei e a voz que fala pelos Profetas. Ele é o Logos, o Verbo. Nele, “todas as coisas foram feitas e por nós”. Antes de Pentecostes, Pedro, João e Tiago vão viver pelas palavras ditas no alto da montanha, confiando, obedecendo, seguindo. Mas ainda vão demorar para uma compreensão maior.
Do mesmo modo temos nossa subida à montanha e muitas das experiências que vivemos com Deus. Sem Pentecostes, nem compreendemos tudo, também somos orientados a silenciar. Como explicar aos que não vivem o que vivemos? Que entendimentos distorcidos e preconceituosos não correm por não guardamos o devido silêncio e prudência? Os apóstolos não tinham chegado à ressurreição para ver todo o quadro, como nós ainda não finalizamos muitas situações para meditarmos adequadamente com todas as informações e podermos ver o sentido.
Enquanto estamos envoltos em tantos dramas humanos, andemos na presença do Senhor, confiando e vivendo o nosso “sim”.
https://www.youtube.com/watch?v=0p79h94gqCI

O Espírito nos leva para o deserto

(Vandeia Ramos)

Ao longo da Sagrada Escritura, vemos como o Povo de Deus entende o deserto: próximo às cidades e vilarejos, memória do afastamento das distrações, dos excessos, espaço para purificação e para aprofundar a relação com Deus. Do espaço geográfico, vamos aprendendo a ler as imagens bíblicas como lugares espirituais, o que nos leva para os momentos de deserto tanto da Igreja, na liturgia, como na história e na nossa vida.
Podemos até mesmo fazer uma leitura do distanciamento social como deserto. Hospitalização, afastamento físico de familiares e amigos, abstenção de muitas diversões e situações públicas… E agora temos a oportunidade de fazer uma leitura mais profunda, existencial, no nosso dia a dia.
Precisamos destacar que é o Espírito que leva para o deserto. Ou seja, como Jesus, não estamos sozinhos. Há uma realidade que não vemos, mas estamos vivendo a partir dela. Com esta consciência, já podemos nos sentir confortados, guiados, seguros, de que nossa vida está nas mãos de Deus.
Jesus passa um longo tempo no deserto: 40 dias. Quarenta é um número simbólico, de preparação, do povo que caminha pelo deserto, na direção da Terra Prometida, em que vai se desvencilhando dos valores e mentalidade do Egito e voltando-se para seu fim, a terra de Canaã. Nós também iniciamos com este convite da Igreja, de ver o que nos afasta de Deus para estreitarmos laços com Ele.
E qual a estratégia de Deus para nos ajudar: deixar que Satanás exponha nossas fraquezas através das tentações. Percebam que não somos atacados nos nossos pontos fortes, ou pelo menos no que achamos que sejamos fortes. É nas nossas dificuldades, no que precisamos vencer em nós mesmos, muitas vezes tão íntimos que temos dificuldades em perceber. Assim, temos a oportunidade de buscar ajuda espiritual para que possamos vencer, ficar mais fortes. Jesus se mantém na Palavra de Deus, e não na manipulação que o diabo faz, oferecendo oportunidades de ser, ter e poder materiais. Não dialoga com o mal – eis aqui a chave de vida.
Como Israel, Jesus não foi ao deserto e ficou sozinho. Estava entre “animais selvagens” e “anjos o serviam”. A Igreja peregrina neste mundo também entre “animais selvagens” e “anjos”. Nós, como Igreja, encontramos estas diversas realidades. Neste último ano, quantas pessoas ficaram em evidência como “anjos”, ajudando a tantos que precisaram? Pessoal da saúde à limpeza, manutenção da sociedade, trabalhadores escondidos que fizeram de nossa vida melhor – pensemos no mundo há vinte, trinta anos, sem os recursos atuais. Que Deus abençoe sempre a tantos que cuidam e se preocupam com a qualidade de vida.
Em Gn 1, 25, podemos ver que Deus criou os “animais selvagens” e que, nos tempos messiânicos (Is 11), viveremos sem medo, entre eles. Vale a reflexão entre sermos os “animais selvagens”, quando firmamos em uma posição, ainda que correta, e nossa preocupação seja de ser quem está certo, dando mais valor a si mesmo que à mensagem ou ao respeito a quem tem o direito de não acreditar no que acreditamos, ou mesmo entender de outra forma. E convivermos com tantas pessoas difíceis, seja pelo temperamento, pelas ideias, profissão… A chave de convivência está em se deixar conduzir por Jesus (Is 11, 6).
E Jesus volta do deserto, com seu primo Batista sendo preso. João é considerado o último dos profetas. No evangelho de hoje, sua prisão marca o início da vida pública de Jesus, que começa a pregar a proximidade do Reino. É preciso que certos ciclos se encerrem para começar um novo, o que nem sempre é visível e simples. A prisão de João é um drama, que sabemos do fim. O momento atual também traz sua dramaticidade, em diferentes esferas e níveis.
Quantas oportunidades estamos tendo de deixar para trás o que foi bom por um tempo, mas não é mais adequado ao agora? Estamos nos voltando mais para a família, para um círculo mais restrito de amigos, analisando as coisas, situações, e vendo o que é essencial, colocando em uma ordem de prioridade. Fazemos o mesmo no trabalho e na Igreja. Às vezes parece uma faxina: tantas ideias, tendências, posições… estão vindo a público, em uma aparente confusão e divisão. A quaresma oferece uma oportunidade privilegiada para ver tudo e reter o que é bom (1Ts 5, 21). Só não podemos esquecer que é o Espírito que conduz… Que estamos entre animais selvagens e anjos, que a tentação faz parte do processo, que o período é espiritual, e que é uma preparação para continuar a “caminhada rumo ao céu”.
A Verdade e o Amor são os caminhos do Senhor. Sigamos anunciando, recebendo nossos catequizandos com ternura e compaixão, aprendendo juntos os caminhos do Espírito.

Vem ver, Senhor

(Vandeia Ramos)


Desde sexta-feira, estamos com o Papa Francisco, entre a Praça São Pedro e o Santíssimo, reunidos com Nossa Senhora aos pés da Cruz. Nossos irmãos estão doentes e estamos chorando por eles, outros estão acompanhando, ainda outros estão cuidando para que as necessidades estejam sendo atendidas. E nós, Igreja, rezamos a Jesus: “Senhor, aqueles que amas estão doentes”.
Em nossa fé, Jesus nos lembra através das palavras de Francisco que não temos cuidado da Criação, que temos trocado nossas prioridades, que a morte não é a última palavra. Não é um vírus que leva a morte, mas somos nós mesmos que viramos as costas para o que é mais importante e nos destruímos através do pecado, não cuidando uns dos outros.
Jesus não nos abandona. Só quer o que é o melhor para cada um de nós: o Céu. E nem sempre é simples de entendermos isso, de aprendermos o caminho. Ele não nos força. É preciso que escolhamos com liberdade. Não basta Jesus querer nos abrir as portas da Eternidade, é preciso que nós a queiramos. E querer envolve vontade e liberdade, compromisso da vida com o Filho.
E os sacerdotes celebram nas igrejas. Nós participamos em nossas casas. Através da quaresma, Jesus vai nos ensinando que o Espírito nos leva para o deserto para que possamos ficar a sós com Deus e aprendermos a ouvir sua voz, a não discriminar, a deixar-nos guiar, a cuidar, a confiar. No momento oportuno, em que estivermos maduros o suficiente para o próximo momento, Ele nos convida a seguirmos.
Nós, como os discípulos, temos dificuldades em entender para onde Jesus nos guia e apresentamos nossa resistência de várias formas, mas o importante é que continuemos juntos, ainda que não entendamos.
Para os judeus, o corpo começa a se decompor depois de três dias, por isso que é importante Jesus só ter chegado depois. Ele sabia o que ia fazer. Ele sabe tudo. Sabe que muitas pessoas estariam presentes, pela importância da família envolvida. E eles foram escolhidos por serem amigos de Jesus. Quanto mais perto de Seu coração, maiores são os pedidos de Jesus. Podemos ver a prontidão das irmãs em ir ao encontro deste tão querido Amigo.
Além da questão entre saduceus, que defendiam o descanso eterno, e dos fariseus, na ressurreição no último dia, Jesus vem anunciar o Novo. As irmãs declaram sua fé em Deus a partir do que sabem, com toda a dor que sentem. E Jesus, através da dor de Marta e Maria, vê o que a morte trouxe ao mundo, pode vislumbrar a dor que trará à sua Mãe, a profundidade do sofrimento a que somos lançados. E (se) lança a luz. Nada está perdido. Há algo além. Podemos começar a ver através…
Jesus vem até nós, até onde não podemos ir. Mas há um movimento que cabe a nós, do querer. E não o fazemos sozinhos. Somos nós que tiramos a pedra dos que estão mortos, dos que estão doentes, dos que não têm forças suficientes, uns dos outros. E o Filho intercede ao Pai. E fala diretamente aos que mais precisam. Agora é a vez deles. Cabe a eles dizer o “sim”. Não pela força deles. Mas de deixarem que o Espírito aja. Eles estão atados pelas mãos e pés, não conseguem andar sozinhos. Também não temos condições de entramos no escuro do sepulcro para tirarmos eles de lá. Tem coisas que não nos cabe fazer. Só nos resta confiar e esperar.
E, depois de tirarmos a pedra, da intercessão de Jesus, do “sim” de quem estava morte, nossos irmãos retornam ao nosso convívio. Ainda precisam de nós para que possam ser limpos, roupas novas e sandálias aos pés, para restabelecer completamente a saúde do corpo e da alma.
Se o momento é de atenção, de deserto, em que estamos afastados de nossas atividades cotidianas, também é de recolhimento no Espírito para aproveitarmos e refazermos nossa vida em Cristo, quando estamos chamamos Jesus, juntos com Maria e Marta, para a Páscoa que se aproxima: “Vem ver, Senhor”.